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Escola do Turismo de Portugal //
Coimbra
Sabores da Região de Coimbra - O Olhar da
EHTC
Estávamos
nos alvores da última década do século passado quando a Escola de Hotelaria e Turismo
de Coimbra (EHTC), organismo público recém-criado, recebia os primeiros alunos
que vinham cursar Cozinha/Pastelaria e Restaurante/Bar. Este estabelecimento
veio instalar-se numa cidade, toda ela, voltada para a sua universidade, uma
academia secular que respirava conhecimento por todos os poros. Mas, os tempos
eram de mudança. Assistíamos a um Portugal a afinar estratégias de inovação,
afirmando-se como um país que, convertendo a hospitalidade no seu melhor
produto, precisava de valorizar, num mundo a globalizar-se, não apenas o que
provinha do domínio do conhecimento teórico, mas também (sobretudo) do que
ecoava da moldura estética do saber fazer.
As Escolas de Hotelaria, no seu
todo, e a de Coimbra, em particular, passavam assim, através da sua acção
diária, a construir o seu discurso não tanto a partir das palavras presentes
nos pesados livros das academias mas a partir de receitas publicadas no parco
acervo bibliográfico da época, ou partir da exploração manual dos alimentos e
respetivas iguarias.
O tempo era de reinvenção, de reinterpretação e de atualização.
Estes aspetos forjavam um novo encontro com os alimentos em que conceitos como
«cozinha de autor» e «cozinha de desconstrução» marcavam a diferenciação ao
nível da «alta Cozinha». E, assim, um novo pensamento para a alimentação ressurgia
e um renovado conceito de «gastronomia» nascia em Portugal. O que até aí em
matéria gastronómica era fruto de uma «escola» empírica (de passagem de
testemunho), passa a especializar-se, fomentando-se um olhar mais crítico sobre
a carta gastronómica de Portugal e sobre os modelos de confeção vigentes,
muito inspirados na tradição francesa.
A
EHTC terá sido a estrutura de ensino/ aprendizagem que primeiro rompia com o
passado. Desde o princípio que Coimbra assenta a tónica formativa no aluno,
espevitando-o para a autonomia e espírito criativo, deixando assim de parte o
seguidismo das receitas clássicas francesas. Orientados por uma nova bússola
programática passam a valorizar o território de proximidade e tudo o que este
representa ao nível da cultura gastronómica. Dele passaram a extrair os bens
alimentares precisos para a sua formação não só no respeito pela origem,
genuinidade e autenticidade, mas também cuidando os aspetos da sustentabilidade,
uma preocupação presente sempre que falamos de coesão social.
Com esta Escola,
a Região ganhou valor ao nível da preservação do Património Cultural,
Gastronómico e Antropológico. Além disso, passou a ter quem inovasse sem deixar
de defender e conservar as receitas antigas, os saberes e os sabores locais
mais diferenciadores. A Região ainda ganhou quem divulgasse a sua imensa
riqueza gastronómica, a qualidade dos produtos locais, quem promovesse e
divulgasse a restauração e a hotelaria. Com esta Escola, a região viu a oferta
turística mais diversificada nas suas singularidades, o que abriu as portas a
uma estada mais demorada.
Uma renovada visão estética sobre a gastronomia
surgia num tempo em que o fator visual passava a ser determinante na atração
de pessoas aos locais. As coisas não valem apenas pela sua essência mas também
pelo que sugere o seu aspeto exterior. A gastronomia desta Região passou a
abarcar este todo cultural.
Tal
filosofia foi-se disseminando aos poucos pela restauração e hotelaria,
iniciando-se um novo ciclo gastronómico com o reconhecimento da Região de
Coimbra: Região Europeia de Gastronomia 2021.
Princípios e filosofia
desta distinção
Este
evento, que conta na sua fundação com Comunidade Intermunicipal de Região de Coimbra;
Turismo de Portugal - Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra; Universidade de
Coimbra; Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro; Turismo
Centro de Portugal e Instituto Politécnico de Coimbra, constituir-se-á o ponto
de confluência desta caminhada iniciada há trinta anos e que tantos ajudaram a
percorrer. Para além de contribuir na qualificação do património imaterial da
Região, tal como afirmara o anterior presidente da Comunidade Intermunicipal da
Região de Coimbra, Dr. João Ataíde, chegou a hora de afirmar que «esta
iniciativa contribuirá para impulsionar a inovação, para reforçar os
sentimentos de pertença e proporcionar uma maior abertura e contacto entre as
comunidades locais, visitantes e turistas, incentivando a partilha de
experiências.» Reconhecidamente, esta distinção surgiu como resposta a uma
candidatura que assenta na valorização do património gastronómico regional; que
pretende envolver as comunidades locais no processo de reforço da identidade
gastronómica regional; que deseja contribuir para o reconhecimento da
gastronomia como fator de diferenciação e de coesão social; que ambiciona a
valorização das profissões (hoteleiras e rurais) de modo a cativar os mais
jovens; e que visa promover a transferência de conhecimento e do saber-fazer
entre os vários agentes, assumindo a inovação como fator de destaque.
Além
disso, participar neste evento constitui mais uma oportunidade de a Escola se
afirmar, contando histórias acerca da gastronomia local e das gentes a ela
associadas, concretizando assim o desígnio que esteve na génese desta
candidatura - Coimbra Region: A Million
Food Stories. Na verdade, cada alimento e cada iguaria remete para o
domínio da rememoração, motivo pelo qual podemos afirmar que gastronomizar é viajar no tempo, no espaço e esperar por uma narrativa romantizada que sirva
para apaziguar os espíritos mais atribulados, num mundo e num tempo em
profundas transformações.
Os
«Produtos Estratégicos da Região»
transportam-nos nessa «Viagem Gastronómica». Uma viagem entre o ontem e o
amanhã, em que o hoje apenas faz de ponte.
Chanfana
Tendo chegado ao ocaso da vida e antes que sucumba
por ordem natural, a Cabra é imolada. E da sua velha carne, totalmente imersa
em bom tinto aromatizado com alho e bem untado com azeite, se prepara em forno
vivo a iguaria das iguarias, que vai à mesa em caçoilo de barro preto,
acompanhada com batata cozida e grelos, especialmente nos dias assinalados, por
terras de Vila Nova de Poiares.
Tendo ultrapassado já o seu carácter eminentemente
recursivo, esta iguaria passou a identificar um território e a gente concreta
que o povoa, cultiva e domina. A Chanfana sintetiza o melhor da natureza e da
cultura endógenas num único produto de fruição regional.
Lampantana
Quando as caprinas escasseiam nos montes ou os
gostos humanos convocam para outras experiências, os ovinos adultos são
chamados às lides gastronómicas. Igualmente abundantes na região da chanfana,
meigos e calmos, bem vividos por entre encostas e vales, misturando-se, por
vezes, com as cabras e os bodes em são convívio no mesmo redil, possuidores de
um corpus cárneo da melhor
excelência, tais criaturas são levadas à mesa da mesma forma que a chanfana e
nas mesmas situações da vida dos homens.
Cabrito
Aos territórios mais elevados da região sobem os
filhotes das cabras, onde procuram alimentar-se das primeiras e frias ervas. Num solo em que os labores agrícolas se
tornam difíceis, cedo os nativos se dedicaram ao pastoreio. Além de uma
excelente forma de procurar alimento, tem sido também uma extraordinária forma
de manter os montes limpos, numa consciência ecológica que, embora empírica, se
foi tornando essencial na prevenção e defesa da floresta, em nome de uma
sustentabilidade cada vez mais requerida. Aí são escolhidos de entre os
animais do rebanho os que se apresentam melhores para o abate, ou seja, as mais
tenras e gordas crias. Se na maior parte dos sítios, estes recém-nascidos
passam depois pelo flagelo da esfola da sua pele, em Oleiros tal martírio é
amenizado pela estona, processo ancestral que, entre rituais próprios, os
configura em singular proposta gastronómica, para quem ali vive e para quem
visita este naco da Terra Mãe. Trata-se de um assado no forno, como mandam as
escrituras, em que à vítima é rasgado o frágil ventre e para onde é depositado
farto recheio: gorduras de porco, presunto, alho, serpão, salsa e louro. Por
entre batatas escolhidas a preceito é levado ao forno até tostar, crocância
agora experimentada somente em dias bem especiais.
Leitão
Ícone
bairradino tornado geo-símbolo, cujo sabor galgou fronteiras, sendo hoje
apreciado em muitos pontos do país e não só. O seu melhor é, logo à partida, o
de ser preparado com bísara, casta constituída por animais de leite, elegantes,
esguios, compridos e de pouco teor de gordura. Depois de devidamente abatidos e
eviscerados, o ventre e a cavidade esofágica dos petizes animais são abertos e
recheados com uma papa feita à base de banha, pimenta preta e alho. Um espeto
longo trespassa todo o corpo inerte, desde o orifício anal até à boca, antes de
uma agulha lhe costurar as tais incisões com «fio do norte». O forno bem
aquecido com vides secas prepara-se para, mais ou menos em duas ardentes horas,
receber aquelas vitimadas criaturas que, entre voltas e «constipações», saem
para mesa cortadas em pedaços quentes, onde se comem na companhia de batata cozida,
laranja e alface fresca devidamente ornamentada com cebola e temperada com o
velho vinagrete.
Lampreia
Por debaixo das doces e claras águas do Mondego
crescem e vivem felizes cardumes de lampreias, até que por fins do Inverno e
princípios da Primavera chega o momento de hábeis pescadores as resgatarem com
alegria do insondável mundo aquático e as colocarem à disposição de capazes
mãos humanas, prontas a afeiçoá-las para manjares suculentos. Depois de
devidamente sangrado e eviscerado espera a este ciclóstomo uma marinada de bom
vinho tinto, o seu próprio sangue, azeite, alho, cebola, onde ficará imerso
pelo menos doze horas, passadas as quais é transferido com tudo para uma
caçarola folgada, onde estufa durante 15 a 20 minutos. Reserva-se, então, a
lampreia, enquanto no caldo se coze o arroz carolino do baixo mondego, criado
sob as águas que sobram do leito deste rio. Apurado o manjar, uma travessa de
barro é escolhida a preceito para levar o preparado completo até à mesa, onde
já devem ansiar os comensais convocados para o saborear.
Pescado da
Arte Xávega
Outrora possantes juntas de bois, guiadas por
adultos e crianças, arrancavam das profundezas do mar gandarez, redes cheias
com cardumes de carapaus, sardinhas, petingas, cavalas, por vezes, raias,
tremelgas, robalos. Esse tempo passou, surgindo o engenho tecnológico e com ele
inovadoras artes de captura. O que então era trazido por tração animal (e
humana) passou a chegar ao areal por força da máquina. A forma de o pescar é
diferente, mas a qualidade do produto é a mesma, numa mesa habituada a conviver
com a excelência que lhe chega das águas frias daquele pedaço de Atlântico que
beija tão singular território.
Sardinha
da Figueira da Foz
Do mar profundo da Figueira da Foz dão à costa
diariamente navios carregados de sardinha. O seu aspeto fresco, a sua elegância
corporal, o seu odor a alga e o seu ar firme seduzem o olhar dos que a desejam.
Desde a canastra que a carrega da lota até aos pontos de venda, ela é olhada
como rainha. E continua a sê-lo enquanto assa sobre brandas brasas e, depois,
com broa, batata e salada de pimentos se come até à total saciedade. Em picnics
públicos ou privados, em jantares e almoços de família íntimos ou alargados, em
palcos mais ou menos gourmets, a sardinha, através da denominação colectiva –
sardinhada - evoca a convivialidade, o companheirismo e serve de referencial à
fraternidade e ao estabelecimento de laços.
Arroz do
Baixo Mondego
Nos
campos alagados pelas fartas e nutritivas águas do baixo mondego é deitada
semente selecionada na época certa (Primavera). Árduos trabalhos de monda
sustentam a sua integridade enquanto vive da terra lamacenta, desde que germina
até que se colha (Outono). Embora se cultivem outras variedades, a Ariete e a Eurosis serão as mais importantes, porquanto os benefícios
produção/qualidade alimentar são mais visíveis. São as baixas temperaturas e insolações durante o período de maturação da
cultura, os fatores agro-ecológicos específicos que contribuem para
amadurecimento lento e consequentemente para a singularidade do grão. Grão
carolino e IGP que, na cozinha, se comporta de forma invulgar, porque resiste
ao fogo sem empapar e, no prato, surge na forma de encantar, porque a sua
textura solta dá gosto saborear
Queijos
DOP – Rabaçal e Serra da Estrela
Se nas Terras de Sicó, o Queijo Rabaçal resulta da
mistura de leite de cabra e ovelha, animais criados ao ar livre e alimentados
das vicejantes pastagens da serra, nas Terras Altas, o Queijo da Serra provém
do leite cru de ovelha, da raça bordaleira
da serra da estrela ou churra
mondegueira, reses únicas alimentadas dos pastos frios que crescem nas
encostas daquela montanha. São-nos dados a apreciar dois alimentos de
excelência, embora de texturas e sabores diferentes, que proporcionam
experiências gastronómicas necessariamente distintas.
O primeiro é curado, semiduro,
uniforme, de pasta de cor branca ou ligeiramente amarelada, o segundo também é
curado, pode apresentar-se semi-mole, amanteigado, cor branca amarelada ou,
ainda, semi-duro a extra-duro, de cor laranja acastanhado. Cada qual com as suas características, os
dois juntos num só desígnio – Portugalidade.
Doçaria
Conventual
Como
se não chegasse a mestria das mãos de tantas donas de casa para criar e recriar
receitas doces, os frades e as freiras, que habitaram os muitos mosteiros existentes,
foram os principais responsáveis pelas melhores propostas doceiras que a região
tem no seu cardápio. Não nos atrevemos a nomeá-las todas, ficamo-nos apenas
pelas mais conhecidas: Pastéis de S. Clara, Sopa dourada do convento de Sta
Clara, Charcada de Coimbra, Arrufadas de Coimbra, Arroz doce, Manjar branco,
Barriga de freira, Pudim de ovos, Lampreia de ovos, Queijadas de Pereira,
Pastéis de Tentúgal, Pastéis de Lorvão, Nevadas, Caramujos, Tigelada, Cavacas,
Filhoses, Amores da Curia, Folares de Páscoa. Todas estas especialidades são
preparadas à base de ovos e açúcar, com acentuado aroma a canela.
Mel
Perde-se
na poeira dos tempos o valor polissémico deste alimento. Se por um lado se
reivindicava para sustento, por outro, figurava frequentemente na mitologia e
nos rituais religiosos. Citado muitas vezes como oferenda aos deuses, ou como
alimento dos deuses, foi para os Antigos Hebreus metáfora da «terra prometida»,
o alimento da gratuitidade de Deus. Numa primeira fase alimento natureza,
tornou-se depois em doçura cultivada. Foi desta forma que passou a ser
utilizado praticamente em todo o mundo. A região de Coimbra seguiu a apicultura
como um desígnio gastronómico. Assim, com uma flora singular de características
endógenas e um clima próprio, associados à mestria humana, deste território
extrai-se um mel com especificidades únicas e apreciado em todo o lado (o mais
conhecido será o mel da serra da Lousã): aroma forte, sabor intenso, cor
pronunciada e viscosidade equilibrada.
Enchidos
Num
território em que a carne porcina tem sido a base alimentar das pessoas que o
têm habitado e dominado, os enchidos (chouriços, morcelas, linguiças,
farinheiras) fazem parte na Região de Coimbra do importante património
alimentar. Estas especialidades gastronómicas identitárias são preparadas a
maioria das vezes pelos pedaços de carne menos nobres do animal e pelo seu sangue.
Depois de bem temperados todos os ingredientes, enchem-se com estes as tripas
do «bicho» imolado. Dentro das chaminés suspendem-se estes trabalhos manuais,
onde, por acção de ténue fogo, são preguiçosamente fumados. Sendo embora
alimentos transversais a toda a região, em virtude das suas baixas
temperaturas, os que se elevam nos fumeiros das serras são os mais apreciados.
Vinho
Já
o velho Alceu dizia «pois o vinho do homem é espelho». O mesmo pensamento paira
em nós quando falamos sobre a cultura do vinho nesta Região (Bairrada e Dão).
Região cuja mesa grava há muito os prodígios desta ancestral bebida, que alegra
e inebria a vida dos homens. Uma narrativa de harmonia de cores, texturas,
sabores e aromas enfatiza as qualidades próprias dos néctares que por aqui são produzidos.
Encontramo-nos numa Região onde não há lugar que não valorize a enogastronomia.
Se do lado da Bairrada, a harmonização poderá ser feita com vinhos mais
adstringentes, do lado do Dão, a combinação palatal poderá advir de vinhos com
estrutura mais delicada e dotação aveludada.
Cerveja artesanal
Nem
só de vinho vive o homem, mas também de cerveja. Esta bebida que, segundo as
fontes, antecedeu o vinho, encontra em Coimbra, especialmente na sua comunidade
estudantil, um mercado importante. O seu baixo teor alcoólico, aliado ao seu
peculiar sabor e frescura perfazem características que convocam facilmente para
a mesa da cervejaria, do café ou de uma esplanada.
By Luís Lavrador,
Técnico Superior e Formador na Escola de Hotelaria e
Turismo de Coimbra
Embaixador da Região de Coimbra: Região Europeia de
Gastronomia 2021
Professor da Licenciatura em Gastronomia (Politécnico de
Coimbra / EHTC)
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