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09 out 2024
Escola de Hotelaria e Turismo do Porto

A igualdade de género na cozinha profissional em Portugal

“O princípio que regula as relações sociais dos dois sexos – a subordinação legal de um sexo ao outro – está em si mesmo errado, constituindo hoje um dos principais obstáculos ao desenvolvimento humano e, justamente por isso, deveria ser substituído por um princípio de perfeita igualdade, que não admitisse qualquer poder ou privilégio de um dos lados, nem discriminação do outro.” JOHN STUART MILL

 

RESUMO

O presente artigo tem como principal objetivo perceber o papel atual da mulher na cozinha profissional portuguesa, procurando-se, acima de tudo, compreender a sua evolução ao longo dos últimos anos e o caminho que ainda está por percorrer até à meta da derradeira igualdade de género.

Na verdade, a igualdade de tratamento e de oportunidades é um dos valores essenciais e um elemento fundamental na justiça social, constituindo-se uma das metas basilares dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), explorado no objetivo número 5, sob a epígrafe “Alcançar a Igualdade de Género e Empoderar Todas as Mulheres e Raparigas”.

Procurar-se-á, ainda, descobrir a realidade de outros países do mundo, em busca da perceção de realidades distintas que, quiçá, poderão representar um exemplo a seguir em terras lusas.

Esta análise dividir-se-á em três capítulos principais:

1) O papel da mulher no mundo do trabalho;

2) O lugar da mulher na cozinha profissional;

3) A realidade portuguesa.

O mundo do trabalho nos dias de hoje é, na sua maioria, injusto para com as mulheres, impondo-se a tomada de medidas para um futuro mais equilibrado, num futuro onde as mulheres deixem de ser invisíveis na cozinha. Esta é a hora!

 

TERMOS DE PESQUISA/ KEYWORDS

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CAPÍTULO I - O papel da mulher no mundo do trabalho

O papel da mulher nas economias nacionais é por demais evidente, seja nas economias mais ricas, sejas nas economias emergentes. Em boa verdade, crê-se até que atrair e reter mulheres no mercado de trabalho é uma filosofia própria de “economias inteligentes”.

Nos países industrializados, o número de mulheres que frequentam o ensino superior é superior ao número de homens, sendo certo que em muitos países em vias de desenvolvimento foi já possível alcançar a paridade de género no ensino secundário.

Não obstante, e apesar da notória evolução nos últimos anos, as mulheres continuam a ser preteridas. A realidade demonstra que, um pouco por todo o mundo, ser mulher implica uma probabilidade de integração no mercado de trabalho de menos 30%, sendo que, com bastante frequência a sua integração insere-se na base da “escada” económica.

Não raras vezes deparamo-nos com estudos, entrevistas e programas da comunicação social, debatendo-se o facto de poucas mulheres conseguirem alcançar o topo do mundo empresarial, ou mesmo da liderança governamental/presidencial. Isto, desde logo, porque a realidade nos mostra que, dos diretores executivos das empresas incluídas na lista da Fortune 500, apenas 32 são mulheres.

A realidade demonstra que as mulheres, na sua maioria, têm empregos mal remunerados, estando excessivamente representadas nas formas atípicas e informais de emprego, isto é, com elevado grau de precariedade.

Durante os últimos anos, o emprego das mulheres tem-se concentrado, cada vez mais, em ocupações específicas e, geralmente, mal remuneradas, no setor dos serviços.

As mulheres continuam a auferir mensalmente, por todo o mundo, cerca de menos 20% do que os homens, ainda que desempenhem o mesmo trabalho ou um trabalho de igual valor. Por outro lado, e ainda que num debate distinto, as mulheres têm maior probabilidade de serem vítimas de violência e assédio no trabalho (em ambas as vertentes: moral e/ou sexual). Nos últimos anos, os casos de assédio sexual a mulheres têm feito manchetes nos jornais, demonstrando que a violência e o abuso são práticas endémicas. Independentemente do país, do setor, do lugar que ocupam ou da hierarquia, as mulheres são alvo de um tratamento injusto, persecutório, discriminatório e abusivo no trabalho. Estas práticas, além de causarem danos às vítimas, criam, globalmente, um contexto esmagador de hostilidade e desconforto para as mulheres no trabalho.

Muitos fatores complexos contribuem para que o mundo do trabalho seja mais ou menos injusto para as mulheres, de acordo com as circunstâncias.

Em   primeiro   lugar, durante os últimos cinquenta anos – quando muitas mulheres começaram a  integrar de uma forma regular os mercados de trabalho formais –, o mundo do trabalho não se adaptou a estas, exigindo-lhes, pelo contrário, que se adaptassem a ele, a um mundo originalmente modelado pelos homens e para os homens. O emprego remunerado foi, assim, simplesmente adicionado à “lista de tarefas” das mulheres. Não foi questionado o tradicional “sistema de género” no qual as mulheres eram as “cuidadoras” e os homens “o sustento da família”. O tempo das mulheres era visto como “elástico”, ao contrário do tempo dos homens, e menos valioso do que o deles. Cinquenta anos mais tarde, a situação mantém-se semelhante.

Em segundo lugar, e como consequência do ponto anterior, as mulheres eram consideradas, e por vezes ainda são, “elementos secundários” da força de trabalho, inclusivamente quando são a única ou a principal fonte de rendimento do agregado familiar.

Em terceiro lugar, a igualdade de género é uma questão tradicionalmente considerada como feminina, pelo que não diz respeito a toda a gente. As políticas e as medidas propostas para melhorar as condições das mulheres no trabalho apontam frequentemente para mudar as mulheres. Por exemplo, um princípio recorrente nos dias de hoje é que, para obter mais tarde melhores empregos, as raparigas deveriam estudar ciências, tecnologias, engenharia e matemática ou dedicarem-se a profissões predominantemente masculinas. Pelo contrário, raramente se orientam os rapazes para profissões tradicionalmente femininas, como, por exemplo, a enfermagem. Desta forma, reforça-se a ideia de que as mulheres valem menos, sendo o baixo valor que o mercado lhes atribui invocado para afirmar a sua inferioridade intrínseca, bem como de uma avaliação tendenciosa das responsabilidades ou competências que o seu trabalho acarreta. Destarte, foram, consequentemente, gerados incentivos para que tanto as mulheres como os homens escolham profissões “masculinas” em vez de “femininas” e as respetivas áreas de estudo, com o inconveniente de uma desvalorização contínua e salários insuficientes para as profissões predominantemente femininas, e uma limitação da gama de opções abertas aos homens e às mulheres quanto ao tipo de vida e de trajetória profissional que deveriam adotar. Como resultado, as transformações das relações de género no local de trabalho, na família e na sociedade foram unilaterais e desiguais.

Em quarto lugar, e apesar de muitas e bem-vindas exceções, o compromisso dos homens no domínio da igualdade de género é ténue e desigual, em consistência com a crença de que são as mulheres que precisam de ser mudadas, e não os homens, nem tampouco os sistemas económicos ou as instituições que modelam as nossas vidas e os nossos trabalhos. Como escreveu JOHN STUART MILL (1) há 150 anos para denunciar a subordinação das mulheres: “Haverá alguma forma de dominação que não pareça natural a quem domina?”. Para algumas pessoas, esta situação permanece inalterada. Alguns homens simplesmente não veem a desigualdade de género como um problema, ou acreditam que esta diz respeito apenas a casos individuais, não constituindo um problema da sociedade que exige compromisso político para mudar estruturas e comportamentos injustos. Outros, podem estar convencidos de que as disparidades de género devem desaparecer no trabalho, ainda sem se aperceberem que determinados comportamentos e práticas, designadamente em casa, reforçam e perpetuam as injustiças que se pretendem corrigir, ou podem não ter certezas quanto à adequabilidade das medidas a tomar. Outros ainda, consideram que a concretização da paridade de género é um jogo de competição no qual as vitórias das mulheres representam derrotas para os homens. Isto é especialmente certo em contextos onde as perspetivas de trabalho são pouco animadoras e a concorrência é feroz. Contudo, mesmo nas economias prósperas, os esforços das mulheres altamente qualificadas e com vasta experiência que aspiram alcançar o topo suscitam resistência e ressentimento. A assertividade, uma característica que se considera natural e desejável nos homens, é muitas vezes entendida como um sinónimo de agressividade nas mulheres.

A solidão das mulheres no mundo empresarial impulsionou várias iniciativas, como a campanha “100 x 25”, da Fundação Rockefeller, cujo objetivo é que, em 2025, cem mulheres trabalhem como diretoras executivas nas empresas incluídas na lista da Fortune 500.

Em face deste cenário, não surpreende que o ritmo de mudança e a velocidade a que se têm reduzido as disparidades de género nos mercados de trabalho tenham sido lentos e díspares. A imagem da mulher como trabalhadora “de segunda classe” está muito enraizada, embora esteja demonstrado que as mulheres querem participar e conservar um trabalho remunerado, inclusivamente após terem sido mães, que as diretoras executivas são tão eficazes como os seus pares masculinos ou que as gerações mais jovens de pais desejam participar mais na educação dos seus filhos e passar mais tempo com as suas famílias. Estes obstáculos sistémicos ou estruturais são os mais difíceis de ultrapassar e os mais resistentes às muitas medidas legislativas e institucionais de carácter oficial, destinadas a promover a igualdade de tratamento, que foram introduzidas nos últimos cinquenta anos. Há boas razões para supor que não bastará simplesmente persistir nas abordagens das últimas décadas, não obstante os progressos reais que estas geraram. É necessário centrar a atenção nessas barreiras, que estão muitas vezes ocultas, e adotar abordagens inovadoras para as superar.

É, pois, evidente, que o mundo do trabalho nos dias de hoje é, na sua maioria, injusto para com as mulheres, impondo-se a tomada de medidas para um futuro mais equilibrado. A verdade é que as portas para o caminho da igualdade vêm, pari passu, abrindo-se, sendo cada vez mais comum a expressão do descontentamento feminino. Veja-se, a este propósito, as grandes manifestações organizadas na América Latina contra a violência de género, com a campanha “Ni Una Menos”, as campanhas virais “Me Too” e “Time’s Up”, organizadas como protesto contra o assédio e as violações.

Também os recentes casos protagonizados por figuras célebres, algumas das quais de meios de comunicação, que se demitiram dos seus empregos ao descobrir que auferiam menos do que os seus pares masculinos, exigindo, como condição mínima para permanecer a igualdade de remuneração, demonstra a dificuldade de correção da desigualdade.

Com efeito, todos estes casos e movimentos demonstram que as mulheres estão cada vez menos dispostas a tolerar práticas como as descritas, inaceitáveis no paradigma atual.

A igualdade de tratamento e de oportunidades é um dos valores essenciais e um elemento fundamental na justiça social.

 

CAPÍTULO II - O lugar da mulher na cozinha profissional

Para PAULA PINTO E SILVA (3), o lugar da mulher é, de facto, na cozinha… profissional. Segundo a antropóloga, a cozinha profissional faz parte de um universo de trabalho onde as mulheres não podiam entrar. Na verdade, se aos homens não era vedada a sua atuação profissional fora de casa, às mulheres tal era-lhes vedado. Por outro lado, a cozinha profissional é uma profissão que exige técnica e força física, habilidades que, historicamente, nunca foram atribuídas às mulheres, apenas lhes sendo incumbido cozinhar em “território doméstico”, onde se bastavam com a intuição, já que esta (a “cozinha do quotidiano”) era considerada menos importante.

Não obstante, no final dos anos noventa, os homens foram, ainda que lentamente, ocupando o lugar da cozinha doméstica e, inversamente, as mulheres foram ganhando o seu lugar na cozinha profissional. Foi, no fundo, uma inversão: se os homens podiam ocupar o espaço doméstico, então as mulheres também poderiam entrar numa cozinha profissional. Não se tratou de uma “migração” simples, mas os tempos anunciam uma mudança, e muito embora os estereótipos permaneçam, as mulheres começam a conquistar o seu lugar na cozinha… profissional.

Em 2018, por exemplo, a edição francesa do Guia Michelin atribuiu 57 novas estrelas. Desse número, apenas dois restaurantes têm chefs mulheres. No ano da ascensão do movimento “Me Too”, parece ter nascido, também, o movimento “Michelin Too”, de autoria da cineasta VÉRANE FRÉDIANI (5), o qual visa, não a denúncia do assédio sexual nas cozinhas (que, conforme adiante veremos, também é uma realidade), mas para denunciar a desigualdade na atribuição de estrelas pelo guia mais conhecido deste meio. Apesar de FRÉDIANI não ser chef, conhece bem o setor, tendo concebido o documentário “The Goddess of Food” (traduzido, “A Deusa da Comida”), em 2017. Enquanto o rodava, descobriu que há muitas chefs que ainda não “mereceram” o devido destaque nos guias da especialidade.

Em boa verdade, durante os mais de 100 anos de história do Guia Michelin foram atribuídas 621 estrelas Michelin em França e apenas 16 a mulheres, o que constitui menos de 3% do total das estrelas atribuídas. Apenas quatro mulheres francesas conseguiram as três estrelas, que, como se sabe, é a melhor pontuação que o guia oferece. A primeira foi EUGÉNIE BRAZIER, chef no restaurante La Mère Brazier, em Lyon, em 1933, e a última ANNE-SOPHIE PIC, do restaurante Pic em Valence, em 2007.

Gráfico de atribuição de estrelas Michelin a chefs do género feminino e masculino

 

Em Espanha, em 195 restaurantes com estrelas Michelin, apenas 19 são dirigidos por mulheres de acordo com a editora do guia, a Groupe Michelin.

 Nos Estados Unidos da América a história repete-se: em 166 estrelas atribuídas, 20 são atribuídas a mulheres.

Itália é o país em que as mulheres têm mais estrelas: 44 num universo de 365 estrelas, o que constitui cerca de 12%.

Em Portugal o cenário não é o mais animador: a título exemplificativo, no ano de 2018 foram atribuídas 45 estrelas a restaurantes portugueses, todos com chefs homens.

O gráfico infra transpõe, em termos esquemáticos, a realidade acima descrita (7).

FRANCK PINAY-RABAROUST (9), especialista e antigo redator do Guia Michelin, aponta como razões para a falta de mulheres na cozinha profissional o facto de ser uma profissão extenuante em termos físicos e de difícil   conciliação   com  a  vida   familiar,   afirmando mesmo que “elas têm que trabalhar o dobro para mostrar que são iguais aos homens”. Por outro lado, o diretor internacional dos Guias, MICHAEL ELLIS (11), afirma que o género não é tido em conta na escolha dos restaurantes a distinguir, referindo que “os nossos inspetores só se interessam pela qualidade da cozinha”.

MARIA CANABAL (13), criadora e fundadora do Parabere Fórum (15), afirma veemente que existe sexismo nas cozinhas profissionais. A jornalista refere que as mulheres são invisíveis na indústria da gastronomia, defendendo que é importante que a indústria gastronómica perceba que ter homens e mulheres na cozinha traz inúmeras vantagens, na medida em que as equipas mistas são 40% mais produtivas.

Em França, 55% dos diplomas de cozinha pertencem a mulheres, sendo o número de reconhecimentos destas muitíssimo reduzido, quando comparado com o setor masculino.

Para CANABAL, o problema da mulher, no geral, é não ser educada como homem – “good girl syndrome” – isto é, é educada para fazer muito bem o seu trabalho e para não dizer nada, não estando, contrariamente ao homem, educada para falar e fazer publicidade de tudo o que fez, de tudo o que ganhou, devendo ser modesta. Por outro lado, as mulheres (chefs) não encontram investidores porque não são conhecidas, ficando, muitas vezes, a aguentar comportamentos absolutamente intoleráveis, porque não podem ir para outro lugar, não podem abrir o seu próprio restaurante, porque não têm investidores.

A par desta dura realidade, comprovada pelos números, de evidente desigualdade de género entre chefs, surge um tema de maior sensibilidade e preocupação, que muito embora não seja o foco do presente artigo, não pode deixar de ser mencionado, pois que, sendo já uma realidade, merece ser aqui tratada.

CANABAL garante conhecer casos de jovens mulheres que foram violadas em cozinhas francesas, mulheres a fazer estágios que são violadas. Segundo a jornalista, as vítimas têm permanecido em silêncio, com medo de represálias, com medo de ficar numa lista negra, de serem castigadas, de não encontrarem mais trabalho, num mundo que já é, per se, tão fechado.

Por tudo isto, CANABAL une-se à luta das mulheres deste setor, em busca do equilíbrio. “Equilíbrio é a palavra-chave.  Não tenho nada contra os homens, mas acho que nós, mulheres, somos a metade da humanidade… A ONU publicou um estudo a dizer que chegaremos à igualdade em 2234. Queremos mesmo esperar?” (17).

 

CAPÍTULO III - A realidade portuguesa

As chefs portuguesas, à semelhança do paradigma internacional, encontram muitos obstáculos apenas pelo facto de serem mulheres. O apoio incondicional entre homens chefs é evidente, sendo essa realidade mais acentuada em Portugal, país que, como se anunciou no capítulo anterior, não tem nenhuma mulher reconhecida com estrela Michelin.

 

A par de todos os preconceitos e estereótipos associados, a difícil conciliação entre a vida familiar e a vida pessoal é, ainda, um dos maiores entraves à afirmação das mulheres no mundo da cozinha profissional, que, muitas vezes, é incompatível com o papel que a mulher sempre desempenhou e desempenha no seio familiar.

 

O número de mulheres que atinge a notoriedade no mundo da cozinha profissional portuguesa é muito diminuto. A verdade é que em alguns países, na sua maioria países europeus, já se vai vendo, aqui e ali, mulheres com duas e três estrelas Michelin, mas Portugal ainda parece estar longe de conseguir esse feito.

A constatação destes dados, para além das inúmeras interrogações sobre os motivos para este estado da arte, encaminha-nos, pelo menos, para uma afirmação: é urgente mudar!

Com efeito, apesar de todo o caminho que ainda falta percorrer até à meta do “equilíbrio de géneros”, são muitas as mulheres portuguesas que têm procurado fazer a diferença, lutando contra a segregação. Assim, por muito que o Guia Michelin “teime” em não querer reconhecê-las, as chefs portuguesas lutam diariamente neste mundo desigual, mostrando que a cozinha é feita de talento e não de géneros. Constituem exemplos deste caminho, entre muitas outras, as seguintes:

Justa Nobre: é uma das chefs (mulher) mais conhecidas do país. Começou a carreira numa pequena tasca da sua irmã Guida, seguiu-se o Restaurante 33 em 1980, e o Iate Ben, em Carcavelos. Só adquiriu o seu primeiro espaço próprio mais tarde com o Constituinte, na Ajuda, mas chefiava já as cozinhas, com o marido a dar o apoio na sala. Durante a sua carreira, rodeou-se de mulheres, algumas da família, e são também elas que a acompanham ainda hoje em O Nobre, no Campo Pequeno. “Eu praticamente sempre tive uma cozinha só de mulheres. Na minha casa, elas é que mandam, são em tudo capazes como os homens. Até porque estão cá há mais tempo, como a minha irmã e a minha prima.” (19).

Marlene Vieira: tinha 12 anos quando pediu ao pai para trabalhar num restaurante, na Maia, inspirada pela figura da mulher que o comandava. “Fiquei espantada por ela ser tão bonita, tão jovem e estar à frente de um espaço de cozinha francesa, algo que eu nunca tinha visto” (21), conta a chef. Chegava à escola com as mãos arranhadas, ouvia comentários, mas nada a demoveu. Lançou-se num curso na Escola de Hotelaria e Turismo de Santa Maria da Feira e, no estágio de hotel, começou logo a trabalhar na secção dos quentes. “Mais tarde, quando passei a subchef de um hotel, um cozinheiro disse-me que nunca tinha tido uma chefe mulher e que eu não ia ser a primeira. Fiz questão de lhe provar que estava enganado” (23), vinca, ao lado da sua equipa maioritariamente feminina na cozinha do Panorâmico.

Anna Lins: quando iniciou o percurso na cozinha asiática no Midori, Penha Longa Resort era a única mulher numa equipa de seis homens. Começou pelas massas e tempuras, depois passou para a chapa quente, já em frente aos clientes, e fez o seu caminho até ascender ao sushibar. “Quando contei a uma cliente japonesa, casada com um português, que ia passar para o sushi ela disse-me: ‘Não, não, as mulheres não fazem sushi’” . Sendo a cozinha tradicional japonesa conhecida por ser pouco compreensiva com falhas e até violenta em termos de relações de chefia, Anna não estranha que esta seja vista pelos japoneses como um lugar pouco indicado para mulheres. Por esse motivo, foi a única a não ser enviada pelo Penha Longa Resort, hotel onde está o Midori, ao Japão. “Mandavam cozinheiros de dois em dois anos estagiar em hotéis do mesmo grupo. Quando me calhou a mim, disseram-me que não valia a pena ir porque os japoneses não me iam ensinar, não era o meu lugar estar numa cozinha.” (25).

Ilda Vinagre: foi responsável pela cozinha de outra casa brindada com estrelas Michelin nos anos 1990: A Bolota em Terrugem, Elvas. À frente dos pratos estava ela, à frente da gestão a sua cunhada, Júlia, e juntas “foram das primeiras mulheres do país a agarrar num restaurante”. Durante quase uma década geri 20 homens na minha cozinha, quase tudo juventude, e nunca me senti discriminada. Hoje, tenho 62 anos de idade, 40 de profissão e toda a gente me tem respeitado.” (27).

Michele Marques: hoje em dia o sotaque mal se nota e até podia ser quase alentejano pelos anos que leva em Estremoz. Nasceu em Petrópolis, no Brasil, numa família em que todos cozinhavam e o pai até era o mestre da culinária. Estudava jornalismo quando aos 21 anos decidiu voar para Portugal, onde vivia uma amiga. Rendeu-se ao Alentejo e, em 2009, arrancava o projeto da Gadanha, uma mercearia fina que Michele abriu com Mário Vieira, natural da terra. A sua cozinha é maioritariamente feminina, mas todos fazem o mesmo, porque Michele acredita que a cozinha não tem género. “A grande diferença na liderança de uma cozinha tem a ver com a personalidade e o objetivo de cada um e não ser do sexo feminino ou do masculino. Acho que trabalho tanto quanto um homem.” (29).

Inês Dinis: aos 54 anos, conta com pelo menos 20 de cozinha profissional, mas os tachos e panelas foram paixão tardia. Aos 23 anos, quando casou, era da mãe e de uma cozinheira nos restaurantes de família que se socorria e ia pedindo receitas. Muito mudou e hoje é ela a “chef da banda” na Casa Inês, espaço que abriu em janeiro de 2012. “As mulheres fazem tão bem ou melhor o mesmo trabalho do que os homens, podem é ter outros objetivos. Na cozinha, elas são muitas vezes formiguinhas, cozinham e ninguém as vê. Já eles gostam de procurar coisas novas, não conseguem fazer sempre a mesma coisa.” (31).

Elisabete Pinto: no BB Gourmet 1858, a chef combina scones de chouriço com caldo verde e compota de laranja com magret de pato, desde há três anos.  O restaurante é o mais criativo da cadeia BB Gourmet, que tem neste momento cinco espaços, e Elisabete tem “carta branca” (literalmente, pois é este o nome do menu degustação) para experimentar diferentes sabores e texturas. Foi a promessa de um restaurante assim que a levou a aceitar o convite do grupo para se juntar à equipa desde há cinco anos como chef executiva. Gere uma equipa de homens, mas sublinha que, por coincidência, cada restaurante BB Gourmet tem uma chef mulher a liderar. No entanto, Elisabete não é de clichés: “Já tive homens nas minhas cozinhas mais organizados do que mulheres.” (33).

Carla Conde: com um pai caçador, talentoso na cozinha, e quatro dos seus seis irmãos a trabalhar em restauração, a chef não fugiu à propensão familiar para a gastronomia. Embora tenha nascido em Vieira do Minho, foi na Suíça que passou os últimos 20 anos da sua vida (e carreira), antes de regressar a Portugal, à terra do marido, onde gere hoje o restaurante Calça Perra. O regresso a Portugal deu-se em 2012, para que a filha pudesse crescer em território nacional. Trouxe influências da cozinha francesa e italiana para o Calça Perra, onde gere uma equipa pequena: são três a trabalhar no inverno e seis pessoas no verão. “Às vezes, ainda se surpreendem por me ver a fazer tudo, tratar das contas, das compras, da cozinha. Mas acho que hoje já se tem uma mente mais aberta nas cozinhas” (35), afirma Carla, que se divide entre o trabalho e a atenção com a família.

Alice Marto: nome incontornável em Fátima, é a imagem do restaurante Tia Alice, aberto desde 1888. Na cozinha do restaurante há maioria de mulheres mas, principalmente, de familiares. Os sobrinhos e netos enchem os corredores e o seu filho António é um  dos  braços-direitos.  “A minha mãe tinha este dom para cozinhar, mas o restaurante sempre foi gerido pela família. Ela entregou-se completamente e tudo nasceu de uma forma muito inocente” (37), conta António Marto.

Noélia Jerónimo: tem 48 anos e é uma autodidata, tudo o que sabe sobre cozinha aprendeu nos livros, a viajar e a ver os outros fazer, tudo o resto é puro talento. Começou a trabalhar aos 14 anos a servir às mesas numa pastelaria, mas depressa a vontade de fazer novo e diferente se fez notar. Ainda chegou a estender massas de pizzas, mas há 12 anos abriu o restaurante homónimo na sua terra natal, o Algarve, onde emana toda a sua identidade e criatividade. É lá que reina o peixe fresco, os arrozes, a confeção simples e os temperos apurados, provas de uma cozinha tradicional, sem truques na manga. “Gostava de morrer dentro do restaurante com uma jaleca vestida. O meu sonho é esse. Se um dia tiver que fechar acho que me vou suicidar. Há uns anos estive três meses em casa e percebi que preciso de pessoas, de calor humano, de vida, de amar alguém através da cozinha. Cozinhar é realmente uma forma de amar, disso pode ter a certeza.” (39).

 

CONCLUSÃO

Que o mundo do trabalho é, na sua maioria, injusto para com as mulheres, era já uma realidade conhecida. Que esta realidade é ainda mais evidente e, diga-se, arrepiante, no mundo da cozinha profissional, parece ser um dado ainda pouco sabido.

O    presente    artigo    destaca    a    necessidade   de consciência da dimensão do problema da (des)igualdade de género na cozinha profissional, problema que já havia sido abordado ao de leve, mas cuja proporção se desconhecia.

Na verdade, o papel da mulher na cozinha profissional encontra-se ainda bastante vulnerável, sendo um dever de todos os protagonistas e figurantes deste mundo lutar em prol de um “equilíbrio”.

Infelizmente, Portugal é um exemplo fiel do caminho que ainda se encontra por percorrer até à meta “equilíbrio de géneros”, até ao tempo em que “as pessoas serão pessoas, finalmente”. Ainda assim, não se pode deixar de notar a quantidade de referências femininas nacionais que lutam diariamente neste setor desigual, mostrando que a cozinha é feita de talento e não de géneros.

Em jeito de conclusão, reflitamos sobre as seguintes “proféticas” palavras: “eu vejo um mundo, que há-de vir, em que as pessoas serão pessoas, simplesmente, sem terem de se cansar a explicar o que são. Antes disso, vejo homens e mulheres, que se defrontarão numa luta sem sentido, feita de palavras e ações, por vezes sublimes, por vezes sangrentas, de jogos e oposições. Sofrerão muito, todos eles, as mulheres na sua submissão, ora revoltada ora traiçoeira, os homens no seu domínio ora cruel ora envergonhado. Deixará de haver senhores e escravos, pobres e ricos, sábios e ignorantes. Então o mundo será um lugar belo na sua infinita diversidade, na sua infinita paz. Cada mulher fará o que souber e quiser, e cada homem também. Esquecer-se-ão, mesmo, que estas palavras alguma vez existiram. As pessoas serão pessoas, finalmente.” (41).

 

autoria:

Luís Branco

Antigo aluno da EHTP do curso de Gestão e Produção de Cozinha

 

Obs: resumo, elementos adicionais e bibliografia disponíveis no artigo originalmente publicado na revista LOBBY Nº 00

 

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