Em busca do paraíso perdido
É ético e sustentável o turismo de luxo em ilhas "paradisíacas"?
Origem e desenvolvimento do turismo de luxo em ilhas
Por que persiste o interesse por ilhas, neste século XXI, onde até há pouco, na “era pré-pandémica” (ou seja, até fevereiro de 2020), a facilidade de cruzamento de fronteiras por parte do turista atingira o seu cume e os fluxos turísticos cresciam exponencialmente? Por que permanece viva a apetência por uma experiência em contexto de enclave turístico? É ética esta forma de turismo? Que valores são tomados como referência nesta “aferição ética”?
O interesse por ilhas por parte de descobridores e botânicos remonta ao século XVIII – Bougainville, reputado viajante que descobre, em 1768, as Ilhas Salomão, na Papua-Nova Guiné, descreve-as como um “Jardim do Éden”, espécie de paraíso natural e utópico oferecido ao amor e epicentro do universo romântico, descrição desde então incansavelmente repetida e que mais não faz do que ir ao encontro da necessidade de superação dos limites naturais, históricos e socioculturais que o homem encerra (Carvalho, 2018: 43). O fascínio pelas ilhas assenta também numa forte vinculação ao paradigma utópico, padronizado através de determinadas imagens e representações de naturalismo, liberdade, erotismo, transgressão, isolamento, sol e clima ameno. É esta pulsão – onde se mesclam e contrapõem os desejos de imensidão, de confinamento seguro num pequeno lugar de limites precisos e visíveis (“nissonostalgie”), de fechamento em concha numa experiência de contração do espaço em contexto paradisíaco e de sugestão controlada de aventura – que faz das ilhas um dos destinos preferidos do segmento de luxo, de que as Maldivas, as ilhas gregas ou as Seychelles são exemplo.
Revisão da literatura
Inúmeros autores têm analisado estas questões, desejos e pulsões por parte do turista social e economicamente diferenciado. Destacamos, entre muitos outros, os trabalhos de Moles & Rohmer (1982: 60), que apontam para a identificação da ilha deserta com romances de transgressão, erotismo e poder; de Abraham Moles, que evoca a tal “nissonostalgie” ou o desejo de ilha baseado em estereótipos insulares; de Alain Corbin (1988), que descreve o “désir de ravage” (ou seja, a necessidade por parte do turista de uma mudança, ao nível do olhar, da imagem da costa e da extensão marítima), e principalmente os de Bénédicte Auvray (2012) em torno da noção de “enclave”. Esta autora explorou a relação entre o indivíduo e o espaço quando inserido numa estrutura turística fechada (focou-se concretamente nas Malvinas e na República Dominicana), concluindo que o turista se move entre o desejo de ilha, o desejo de margem, o desejo de confins e a vontade de privatização no âmbito da experiência de insularidade.
Estes enclaves turísticos aparecem assim como uma síntese que procura resolver a tensão entre alteridade e familiaridade no turista ocidental, que busca, por um lado, um exotismo resultante de uma certa produção iconográfica, literária e artística e de mitos de perfil neocolonial, e, por outro, o fechamento em “concha”, com a inerente preservação da intimidade na sua forma primordial (a família ou o casal). A este desejo de privatização do espaço dá resposta o enclave ao apresentar-se como lugar exclusivo cujos pontos de entrada são controlados e os limites traçados, apostando-se na preservação do conforto e dos privilégios de uma atmosfera onde primam a tranquilidade e uma suposta autenticidade.
Auvray (2012a: 3, citada por Carvalho, 2018: 123) conclui, assim, que os enclaves turísticos proporcionam uma descontinuidade espacial, um estereótipo de alteridade, uma sobreinsularização e o acesso a uma paisagem exótica com o conforto de um ambiente familiar. Por outro lado, nos enclaves prevalecem a segurança sobre o aleatório, a identidade sobre a alteridade, o recolhimento sobre a descoberta. O enclave permite ainda uma separação relativamente ao quotidiano e uma libertação das contingências locais, através de um processo de constituição artificial de uma “bolha internacional”, fortemente ocidentalizada, frequentada por pessoas abastadas com interesses convergentes, se necessário devidamente policiada (veja-se o caso da Politur – polícia turística dominicana) (mencionada por Theodat, in Pagney Benito-Espinal, 2008: 237, citado por Carvalho, 2018: 125).
Ao nível da conceção arquitetónica, podem reproduzir o modelo do hotel ou privilegiar acomodações separadas (villas ou bungalows) – são, nos termos da heterotopia foucaultiana (Foucault, 2004: 14, citado por Carvalho, 2018: 126), “tipos de lugares que estão fora de todos os lugares”, embora sejam sempre passíveis de serem localizados. Busca-se um território facilmente cartografável, não sendo por acaso que nos resorts (e nos folhetos de apresentação) abundam os mapas, permitindo assim ao turista apropriar-se facilmente destes lugares isolados e desconhecidos, evitando-se a todo o custo que se sinta “deslocalizado”.
O enclave não dispensa, portanto, os códigos ocidentais de comportamento e estilo de vida, que mescla com cores e símbolos de uma tropicalidade confusa (Auvray, 2012b: 63, citada por Carvalho, 2018: 126).
Desfasamentos entre ética, sustentabilidade e “paraíso” – alguns ensaios de respostas
Como bem destaca Marco d’Eramo, sociólogo e jornalista, o turismo, se por um lado é uma componente essencial do exercício da liberdade tal como é entendido no mundo ocidental, por outro é também uma indústria contaminante numa dupla aceção. Em primeiro lugar, enquanto indústria que ativa outras indústrias, acarreta toda a contaminação que estas (aeronáutica, automobilística, da construção civil, naval, etc.) produzem. Em segundo lugar, como indústria social, produz contaminação humana (desertificação dos centros urbanos, gentrificação, “disneylandização” do lazer, perturbação dos ecossistemas). É assim inevitável que “uma sociedade baseada no consumo, que nos empurra a todos para ser consumidores, conduza, ao fim de contas e em última instância, a estender esta atividade ao mundo em que vivemos, ou seja, a consumir o planeta”.
Acrescem, no turismo de ilha, os evidentes desfasamentos entre a experiência paradisíaca do turista e a vivência concreta das comunidades locais, desfasamentos esses que não podem deixar de nos provocar inquietação e de provocar reflexão. Vejamos os seguintes exemplos (Carvalho, 2018: 123; Auvray, 2012b: 91; Hanna, 2017):
• Ilhas polinésias e ilhéu Bombom (São Tomé e Príncipe): quase completa deslocalização dos empreendimentos turísticos das comunidades locais; criação de enclaves turísticos (plataformas ou palafitas de bungalows), que procuram proporcionar ao turista o usufruto da “realidade” que lhe foi vendida - criam-se assim “autenticidades” de forma artificial, numa síntese contraditória entre utopia e realidade.
• Maldivas: desde os anos 1970, separação (organizada pelo próprio Estado) dos turistas em relação às populações locais, em virtude das profundas diferenças políticas, religiosas e morais entre uns e outras. A implementação do turismo assenta na segregação sócio-espacial e no enclave, com o objetivo de preservar a população local e a sua identidade muçulmana da influência dos turistas ocidentais. O Islão, tal como é praticado nas Maldivas, considerando as restrições legais (proibição do consumo e venda de álcool, interdição do uso de biquini, charia, etc.) pouco compatíveis com o desenvolvimento eficaz do turismo internacional “de casal” ou de “lua de mel”, obrigou a que este se implementasse e desenvolvesse para além do quadro legal, político e espacial dos habitantes locais. O turismo tem lugar nas «ilhas-hotel» ou resorts (cerca de uma centena, em 2012) diferentes das habitadas pela população local.
Não obstante o turismo representar 41,5% do PIB, chega-se facilmente à conclusão de que a situação está longe de se poder considerar “ética”, tendo em conta:
a) a desigual distribuição dos benefícios;
b) o facto de o sobre-investimento no turismo conduzir ao subinvestimento nas indústrias tradicionais e à crescente vulnerabilidade a acontecimentos locais fora do controle do país (nomeadamente as medidas internacionais no sentido de diminuir o impacto da aviação nas alterações climáticas, que expõem as Maldivas a um impacto económico negativo);
c) o facto de os trabalhadores viverem separados das famílias por longos períodos (não podem deslocar-se entre ilhas), em condições precárias, com 7/7 dias de trabalho;
d) os custos ocultos das férias exclusivas (piscinas, jets privados, cruzeiros, campos de golf);
e) o elevado consumo de energia e água, desviando recursos por vezes escassos e privando os locais em benefício dos visitantes;
f) o facto de cerca de 80% dos benefícios saírem do país;
g) os níveis de desperdício/lixo inerentes aos tipos de serviços hoteleiros e de restauração proporcionados ao turista.
Paralelamente, promotores turísticos e autoridades locais vêm ensaiando (de um modo geral), ao nível do discurso promocional, tentativas de mitigar o anátema (principalmente para o turista) que é ser protagonista de um turismo na prática agressivo e em nada consentâneo com alguns dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) definidos pelas Nações Unidas (47), a atingir até 2030, nomeadamente os seguintes:
N.º 1 – Erradicar a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares;
Nº 4 – Garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos;
Nº 6 – Garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água e o saneamento para todos;
Nº 8 – Promover o crescimento económico inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o trabalho digno para todos;
Nº 10 – Reduzir a desigualdade no interior dos países e entre eles.
No caso das ilhas Naxos e Leros (Grécia), os promotores enfatizam uma associação da ilha à morada dos deuses, “um ponto branco no meio das águas azul-turquesa do Mar Egeu” (TripAdvisor, citado por Carvalho, 2018: 171); destacam o isolamento da ilha vs. a imensidão do mar, respondendo assim aos desejos de ilha e de imensidão apontados atrás; o casario é apresentado como imagem de ruralidade acolhedora; faz-se, portanto, a afirmação de uma autenticidade e de uma hospitalidade credíveis, sempre indexadas à beleza do lugar; destaca-se que o lugar não sofreu intervenções humanas suscetíveis de provocar fraturas ou degenerescências. Ao turista, em suma, é proposto tornar-se um membro da comunidade, participando no seu desenvolvimento sustentado (Carvalho, 2018: 172).
No caso das Seychelles (descritas como «your own private island»), os promotores enfatizam a realidade do sonho da posse de uma ilha: “viver na sua própria ilha privada (…) escapar ao mundo real e voltar para a natureza” (Carvalho, 2018: 161-2). É exaltado o efeito sedutor da capital, Victoria, enquanto cidade liliputiana, a par da pureza das praias e da vegetação exuberante. Promete-se também a tranquilidade assegurada por uma gestão cuidadosa dos fluxos de visitantes, num lugar de exceção reservado a alguns “eleitos”. As Seychelles foram consideradas, em 2016, como o melhor destino de lua de mel do mundo, e são o país africano com maior rendimento nominal per capita, com elevados valores no Índice de Desenvolvimento Humano. No entanto, são também um dos países do mundo com mais desigual distribuição da riqueza, continuando a existir uma elevadíssima taxa de pobreza com a inerente injustiça social (Carvalho, 2018: 161-2).
É inquestionável, no entanto, que nestes países o turismo é uma das principais fontes de produção de riqueza – com impacto determinante no PIB, incremento do bem-estar ao nível pessoal e coletivo e enquanto fator “motor” decisivo ao nível dos serviços, empregos e investimentos.
Com o objetivo de dar resposta à complexidade destes desafios, têm vindo a ser aprovados diversos documentos. Destacamos o Código Mundial de Ética do Turismo (1999), que pretendeu servir de plataforma para a sustentabilidade do turismo na passagem para o novo milénio, conciliando ecologia e economia, ambiente e desenvolvimento, abertura às trocas internacionais e proteção das identidades sociais e culturais. Facultando, em suma, o equilíbrio entre um turismo sustentável e responsável e a liberalização acrescida das condições que presidem ao comércio de serviços (Carvalho, 2018: 45 e ss.) Porém, mais de vinte anos depois, é claro que tal busca de equilíbrio não foi de modo algum alcançada, tendo ganho novos, diversos e ainda mais complexos contornos no atual contexto pandémico e no pós-pandémico que se avizinha.
Na busca deste equilíbrio, há que considerar os vários atores presentes: os protagonistas – turistas; os promotores – agências de viagens, operadores turísticos e entidades públicas; os potenciais beneficiários – comunidades recetoras. Eticamente, o que se propõe ao nível da interação com o contexto visitado é que o turista privilegie a interatividade com o outro (ou seja, com os membros da comunidade recetora e a sua cultura), e que o encare mais como pessoa e menos como objeto (Carvalho, 2018: 33). A hospitalidade implicaria, assim, uma relação de respeito de duplo sentido (hospedeiro – hóspede e vice-versa).
O conceito de happy host (Snaith & Haley, 1999, in Bimonte & Faralla, 2016: 200, citados por Carvalho, 2018: 39 ) é, portanto, essencial para o sucesso do desenvolvimento do turismo: torna-se, pois, essencial monitorizar as atitudes dos residentes relativamente a esse desenvolvimento e compreender como e se os locais e os hospedeiros são afetados.
Conclusão
É, em conclusão, inquestionável que as ilhas ditas “paradisíacas” persistem como um dos destinos preferidos do segmento de luxo, considerando os atrás referidos desejos de imensidão, de confinamento seguro num pequeno lugar de limites precisos e visíveis (“nissonostalgie”), de fechamento numa experiência de contração do espaço em contexto paradisíaco e de sugestão controlada de aventura (Carvalho, 2018: 123-4), desejos esses associados à vinculação a um paradigma utópico, padronizado através de representações de naturalismo, liberdade, erotismo, transgressão e isolamento. O turista, através do seu imaginário, carregado com tais pré-representações, transforma assim um lugar neutro num destino turístico (Amirou, 2000: 1, citado por Carvalho, 2018: 34), emanando depois a sua experiência e alimentando um ciclo de significações que perpetuam o interesse por estes destinos.
O turista social e economicamente diferenciado encontra assim no enclave (Auvray: 2012a) a resposta aos seus desejos de ilha, de margem, de confins e de privatização do espaço.
No entanto, a procura por estes destinos redundou também no desenvolvimento de uma indústria onde são flagrantes os desequilíbrios ecológicos, sociais, económicos e culturais.
Destacamos, em síntese, a nível ecológico: a contaminação aeronáutica, o elevado consumo de energia e de água para manter, nomeadamente, piscinas e campos de golfe, com o que tal implica de desvio de recursos da população local em benefício dos visitantes, e ainda os elevados níveis de desperdício e de lixos que estes serviços hoteleiros e de restauração originam. A nível social: a deslocalização dos empreendimentos turísticos das comunidades locais, a segregação socio espacial implícita no enclave e as discutíveis condições socio laborais dos trabalhadores locais. A nível económico: a desigual distribuição dos benefícios, continuando assim a existir elevadíssimas taxas de pobreza na generalidade dos destinos aqui mencionados; a fuga de cerca de 80% dos benefícios de alguns desses destinos (Hanna, 2017); o facto de o sobre investimento no turismo conduzir ao subinvestimento nas indústrias tradicionais. E, por fim, a nível cultural: a criação de “autenticidades” de forma artificial, pouco credíveis, em ilhas-hotel ou resorts, ocorrendo contradição entre a utopia buscada e a realidade; escassa interação entre visitantes e populações locais (Seychelles); ausência de uma relação de respeito de duplo sentido (entre hóspede e hospitaleiro).
Chamamos, portanto, a atenção para a necessidade de implementar modelos turísticos mutuamente benéficos, não só para prevenir eventuais conflitos latentes e a oposição ou hostilidade face ao turismo (como a ocorrida nas cidades de Barcelona ou Veneza), mas principalmente para proporcionar o desenvolvimento de um contexto que favoreça a qualidade de vida das populações locais, uma distribuição da riqueza gerada menos desigual e um crescimento económico inclusivo e sustentável, no quadro dos ODS definidos pela Nações Unidas.
Autoria:
André Ameixa
Cleidiane Melo
Joana Francisco
Tomás Sá
(antigos alunos do curso de Gestão e Produção de Pastelaria da Escola de Hotelaria e Turismo do Porto)
Obs: resumo, elementos adicionais e bibliografia disponíveis no artigo originalmente publicado na revista LOBBY Nº 00.