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03 out 2024
Escola de Hotelaria e Turismo do Porto

Entre o “acolher” e o “desafiar”

A difícil arte de encontrar a ocasião e a medida

Sou Formadora há mais anos do que gosto de admitir, porque entrega a idade que eu tento disfarçar com uma boa maquilhagem. São inúmeras formações num par de décadas e milhares de nomes e caras, pelo que (digo eu sem muito orgulho) não me lembro da missa a metade. Já ser Professora é algo relativamente recente em minha vida e tem sido uma experiência totalmente distinta… Trata-se de duas palavras facilmente comutáveis, mas para o bem do meu argumento, entenda-se como “Formador”, o educador numa relação mais efémera e “Professor”, aquele que está num contato mais longo e constante com o educando. Foi nos últimos anos, quando comecei a ter a honra de ser tratada desta última maneira, que percebi o tamanho da diferença.

 

A relação Formador-Formando é muito diferente daquela entre Professor e Aluno. É mais curta e, por consequência, tende a ser menos profunda. Não há tanto espaço (e tempo) para formar o ser humano, além do discente.

 

A ligação entre Professor e Aluno, quando tratada com o devido cuidado e importância, tem muitas similaridades com aquela entre um Líder e a sua Equipa ou mesmo entre pais e filhos. É um medir de intensidade, uma adaptação constante… momentos de falar e momentos de calar. Vivemos entre validar e desafiar… cada coisa na sua hora e ambas extremamente importantes. Um indivíduo que não conhece disciplina, por um lado, frustra-se muito facilmente quando o resultado imediato não é o que espera; por outro, não sabe respeitar nem impor limites, tão essenciais para o bem-estar comum da sociedade. Já um sujeito que não conhece o cuidado e a validação das suas necessidades não saberá, nunca, oferecer isso a alguém; não perceberá a importância da empatia, porque não a vivenciou. Atitudes quase opostas, mas ambas igualmente necessárias. A arte, aqui, é encontrar a ocasião e a medida. Daí, meu paralelo com uma das mais duras missões deste mundo: a parentalidade.

 

Espera-se que os pais amem os filhos incondicionalmente. Neste cenário, será sempre seu impulso acolher, validar, “dar colo” – porque todos precisam de colo, de vez em quando, e porque, sejamos sinceros, os pais adoram! Sentem-se importantes, reestabelecem a conexão… Ainda assim, precisam por vezes repreender, deixar entristecer, permitir que cometam erros que eles, os pais, sabem que vão doer, às vezes, muito. Faz parte da vida, são dores de crescimento. A única certeza que os filhos sempre devem ter é de que, apesar de não poder protegê-los de todas as mazelas do mundo, têm sempre os pais para “lamber as feridas”... E estamos nós de volta ao ciclo. Ser um professor (ou um líder) demanda uma “ginástica” muito semelhante.

 

Sendo uma dinâmica entre pessoas, não é surpresa que entre Professores e Alunos (ou Líderes e Equipas) existam diferentes formas de interação, diversos graus de envolvimento e múltiplas maneiras de relacionar-se. Há aqueles que irão, por opção (assim espero!), envolver-se menos. Focam-se no conteúdo e mantêm os relacionamentos interpessoais e os próprios alunos numa distância segura. Num olhar imediatista, é sem dúvida mais simples, menos complicado. E, em muitos casos, consoante perfis e mesmo áreas de ensino, faz mais sentido. Mas há aqueles que carecem demais entrega, mais partilha, mais troca, maior envolvimento, de uma experiência docente mais ampla. É, como eu ilustrei, quase uma parentalidade em forma de docência. Feliz ou infelizmente, é neste grupo que me insiro.

 

Escolher ser um Docente 360º – não só lecionar a matéria, mas também formar o indivíduo – exige disponibilidade, energia, entrega (ou troca?) e vulnerabilidade, pois quanto mais de perto se olha, mais expostos estamos na nossa própria “humanidade”, nas nossas falhas e em tudo o que podemos não saber. Dá imenso trabalho fazer bem, mas, a longo prazo, vale imensamente a pena.

 

Veja bem: não há “certo” ou “errado” quanto à decisão de sermos ou não Professores (ou Líderes) neste espectro mais amplo. Há perfis, disponibilidades e objetivos diferentes. Minha única questão é: o “não” o ser deve ser uma escolha, uma decisão e não uma omissão ou até uma distração.

 

Quando se assume este papel mais abrangente, são precisos muitos esforços, mas destaco entre eles: ser acessível (verdadeiramente) e relacionável, ser real, partilhar experiências, ser alguém visto como um exemplo tangível possível de ser seguido e não como um conto de fadas. É uma conexão que se constrói com base na confiança mútua. Aos poucos, vamos conhecendo cada aluno na sua individualidade e passamos a buscar tratá-los como iguais, na medida da sua desigualdade. Tentamos perceber as suas forças e as suas fraquezas, os seus gatilhos, as suas motivações, e, muitíssimo importante, os seus pontos de rutura.

 

Há aqueles que percebemos que, por conta da sua experiência de vida ou mesmo da sua personalidade, têm um “estofo” emocional absurdo. Alguns conseguem navegar lindamente nas relações interpessoais. Outros são mais frágeis e, ao menor sinal de ameaça, física, psicológica ou até imaginária, “quebram”. Há os que, sob pressão, florescem! E os que facilmente sucumbem. E todo esse conhecimento que se adquire, resultante do contato próximo, vai para uma biblioteca, um kit de ferramentas, catalogado seja por pessoa (para sabermos como lidar com aquele ser em específico), seja por situação (para que possamos usar o entendimento prévio e adaptar ao próximo indivíduo). E, neste momento que nos lê, pensa: “Bem, isto é um bocado difícil”, certo? Errado. Essa é a parte fácil, que “só” exige cuidado e atenção para ouvir verdadeiramente. Difícil é o que vem a seguir…

 

O maior desafio, quando se conhece bem as pessoas, é saber quando acolher e quando “empurrar” para o mundo; quando validar os seus medos e sentimentos e quando internalizar esse entendimento (e, muitas vezes, a empatia que sentimos) e indicar o caminho para um percurso menos confortável, mas que acreditamos que os levará a um lugar melhor. É a balança entre o “Sim, respeite os seus limites” e o “Será mesmo esse o seu limite?”. O que torna essa tarefa tão difícil é que a medida não é a mesma nem com um mesmo indivíduo (pois todos nós temos imensas flutuações de ânimo e energia), que dirá com todo o grupo – sem esquecer que nós mesmos somos humanos, falhos, e temos, como nossos alunos (ou membros da Equipa), dias menos bons, por diversos motivos, que minam a nossa capacidade de gerir a nós mesmos, que dirá aos demais.

 

Na sala de aula, sinto uma constante necessidade de fazer estas ponderações. Busco nunca assumir um aluno afeto às conquistas académicas como alguém que não precisa desenvolver-se de outras maneiras, nem muito menos concluir que outro é caso perdido sem perceber a sua história, as suas questões e as suas motivações, o que não quer dizer que não enxergue as escolhas pessoais de serem medianos e não terem o menor interesse em serem “incomodados” para se tornarem incríveis. Aliás, confesso, nada me dá mais “preguiça” do que ver alguém que precisa ser convencido de que não deve estar feliz sendo medíocre.

 

Vejamos o caso de alguém que chega constantemente atrasado para as aulas. Há uma grande chance de ser, desde cedo, rotulado como preguiçoso ou “descompromissado”. E vejam bem: pode facilmente ser o caso! Porém, julgo que há outras componentes a serem analisadas. A que distância da Escola vive este aluno? Quais suas opções de transporte? Qual a sua dificuldade de dormir? Como está a sua nutrição? Está a passar por algo desafiante neste momento? Há muito a saber e a considerar antes de concluir que é uma escolha consciente e egoísta. E, mesmo quando muitas coisas explicam o fato, não quer dizer que justifiquem… O que poderia ser feito para contornar as dificuldades que o levam a atrasar-se? De que forma mais eficiente poderia ter comunicado com o professor desde o início das aulas ao invés de simplesmente não estar presente quando as aulas começam?

 

Entretanto, é importante pontuar: quando busco perceber melhor a situação de cada aluno, não quer dizer que seja, de todo, permissiva. Muito pelo contrário. Nunca me vão ver a dizer (ou mesmo pensar) “Oh coitado, deixa estar, a vida dele é mais difícil”… Isso, porque acredito ferozmente que as dificuldades são parte da vida e aprender a superá-las e encontrar soluções é primordial. É o que difere as pessoas. Tudo que quero é fazer esta jornada de superação e descoberta ao lado dos meus. A distância que separa um aluno posto de lado, que passa a acreditar no desprezo que recebe e mesmo que o merece, e um aluno que encontrou maneiras de superar o que pudesse o pôr nesta posição, muitas vezes, é um olhar atento, uma palavra empática, um genuíno “preocupar-se”.

 

Se nesse panorama já é tão relevante estarmos constantemente a adaptar o nosso olhar, quando exerço minha função de Coordenadora de Estágios, essa necessidade torna-se gritante. Para muitos, é o primeiro contato com o “mundo real”. Há aqueles que se enquadram perfeitamente à realidade do trabalho e são, por vezes, melhores neste contexto do que na sala de aula. Mas, em sua maioria, os alunos precisam de um período de adaptação e o ser humano é, em sua essência, imediatista (sem falar nesta geração que cresceu com a resposta em tempo real). O resultado é uma avalanche de reclamações e questões a cada início de época.

 

Se no primeiro cenário, a dinâmica incluía apenas a turma, agora, entra na equação uma outra parte: as entidades e as suas equipas. Imensas novas variáveis a serem consideradas, sobre as quais, muitas vezes, não tenho, em minha “biblioteca”, informações. E torna-se mais difícil e essencial, continuar a ponderar, medir, e não simplesmente pensar que os alunos reclamam por não estarem mais sob as “asas” da Escola e porque a realidade dá trabalho.

 

Há casos (mais do que gostaria) que acabamos por chegar, de facto, a estas conclusões. Mas mesmo quando isso acontece… desistimos ou continuamos a formar, a tentar indicar caminhos, a partilhar experiências?

 

Sem falar nas muitas situações que são reais, que configuram excessos, ameaça e, até mesmo, assédio. Sutis indícios que só poderemos identificar se estivermos atentos e disponíveis, se estabelecermos um canal verdadeiramente aberto e seguro, onde as pessoas se sintam confortáveis em errar e acertar, e possamos ter a oportunidade de perceber quando precisam de ajuda, mesmo quando não dizem.

 

Mais uma vez, não há fórmula. Não é simplesmente condenar os que se portam menos bem, e acabam por não representar a si mesmo e à Escola como gostaríamos. Nem tão pouco “dar colo” aos que sofrem algum abuso e deixar que desistam ou que permitam que a experiência os marque negativamente para o resto da vida. É imprescindível, nos milhares de panoramas possíveis, formar, analisar, ponderar alternativas, ver todos os lados da estória, procurar soluções, comunicar.

 

Muitas vezes, o comportamento visto como “mal” vem de muita energia e vontade, mal canalizadas. Vem do pouco sentimento de pertença ou valorização. Vem de um ambiente tóxico, onde nunca tivemos, verdadeiramente, chance de sucesso. Se há aqueles que se portam mal “porque sim”, que não têm o mínimo comprometimento com o que assumem? Claro. Mas, e então,… deixamos? Abandonamos? Damos como caso perdido ou procuramos perceber melhor suas razões, ouvir a sua voz, dar espaço e validar como pessoa, antes de concluir que não há, efetivamente, mais nada a ser feito? O “lavar as mãos” é cômodo, mas irresponsável se feito muito constante e prematuramente. Toda gente precisa de acolhimento, mesmo quando está errada. É preciso sentir na pele o cuidado, para sabermos oferecer aos outros e a nós mesmos.

 

Nos casos mais infortúnios, quando assistimos, tristes, os nossos alunos (ou membros da equipa) passarem por situações injustas e, até, quando são vítimas, é ainda vital que tenhamos capacidade de análise e frieza de espírito, pois acolher pura e simplesmente não é, tampouco, solução. É preciso, quase sempre, perceber as atitudes e permissões que o colocaram naquela posição para que não volte a acontecer. Não falar sobre é pôr penso rápido em corte profundo. Acabamos por vezes tendo que guiá-los por caminhos quase tortuosos, que dói até em nós, mas que acreditamos ser importante para curá-los verdadeiramente.

 

Em diferentes situações, o “acolher” ou o “disciplinar” envolvem posições tão desconfortáveis e delicadas que até percebo quando as pessoas optam por não o fazer – seja por omissão ou por adotarem a mesma linha de ação para toda e qualquer situação. Mas sei que eu não consigo viver desta maneira. Eu preciso saber que estou a tratar as pessoas como quero ser tratada, sempre. Preciso ter a segurança de que, quando for preciso, terei quem me acolha, me valide, me deixe chorar. Mas que depois, me vai enxugar as lágrimas e obrigar-me a levantar. Por outro lado, quero acreditar que, quando não estiver a ser correta, terei quem me ponha no sítio, que tenha a coragem (e a vontade) de enfrentar-me e pôr-me a jeito. Tenho que ter pessoas à minha volta que confie que serão capazes de dominar esta arte de saber o que fazer e quando o fazer. Para isso, acredito que necessito ser esta pessoa para os que confiam em mim.

 

Lembro-me de ser criança e ficar tão irritada quanto maravilhada com a capacidade dos meus pais de me receberem nos braços, quando era preciso, e pôr-me de castigo, dez minutos depois, nas muitas vezes que merecia. Pensava que seres esquisitos eram esses que me davam beijinhos nos “dodóis” quando eu me estatelava num muro e, tão logo eu parasse de chorar (ou sangrar, eu fui bem atentada), era hora de uma bronca colossal por ter destruído a bicicleta. Essa habilidade me marcou e, hoje, tudo que eu busco é ser essa pessoa quase elástica, capaz de encontrar a hora e a medida e ser, para os meus alunos, ou quem precise, a palavra certa, dita no tom correto, que os indique a direção exata.

 

Ninguém precisa o tempo todo de refúgio. Tampouco, alguém carece de constante confronto. Somos todos circunstancialmente preguiçosos, corajosos, calmos, reativos, entre tantos outros. Lembre-se das suas próprias humanidades e estará sempre pronto a acomodar (seja para validar ou questionar) as dos outros. Porque o primeiro passo para fazer a diferença na vida de uma pessoa é que ela lhe reconheça como alguém que deseja verdadeiramente fazê-lo e, depois, trabalhar muito neste sentido. Tudo que é bom, dá trabalho. Mas, na minha humilde experiência, vale a pena.

 

autoria:

Cláudia Mokdisse

Formadora de Staffing & Career Management e de Liderança e Gestão de Carreiras e Coordenadora de Estágios na EHT

 

Obs: resumo, elementos adicionais e bibliografia disponíveis no artigo originalmente publicado na revista LOBBY Nº 02.

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